sexta-feira, 1 de abril de 2011

A CANÇÃO DO PROFETA NO DESERTO DA MORTE

Alguém já disse que há uma diferença entre o poeta e o profeta. Essa diferença está no ouvinte. É que o poeta canta suas canções para os vivos, enquanto o profeta canta suas canções para os mortos. O que os diferencia está no estado do ouvinte: se vivo ou morto. Daí a vocação do profeta ser tão difícil.
É fácil cantar para os vivos. Seus ouvidos estão preparados para receber a música. O seu corpo responde com satisfação ao toque da melodia. Há uma cumplicidade entre o que é falado e o que é ouvido. A música cumpre o seu papel: faz amor com o corpo que estremece diante da beleza. Mas, para os mortos, a coisa muda de figura. Não há resposta. O profeta é o poeta que canta quando não há ninguém para ouvir. Ele canta porque acredita no inacreditável: que mesmo diante da morte, há de se brotar a vida. O profeta é aquele que anuncia ressurreições.
Há nas Sagradas Escrituras uma história surpreendente de um profeta que foi levado ao lugar dos mortos. Ele era uma versão antiga de Louis Musset, um poeta francês que tinha um estranho hábito: declamar seus poemas nos cemitérios de Paris. Aquele era o lugar de sua vocação, um cemitério, cheio de sepulcros com ossos expostos. Nem sequer foram enterrados. Estavam lá, espalhados para quem quisesse ver. Uma visão aterradora, digna de um filme de terror. Ele tinha uma missão: trazê-los de volta à vida através da música que brotaria de suas palavras. Mas como ouviriam se estavam mortos? Que estranha tarefa foi-lhe comissionada: falar aos mortos!
Que palavra seria esta que tem o poder de trazer os mortos de volta à vida?... Ele entra na casa onde há pranto e dor: “... a menina não morreu, mas dorme...”. A cidade está cercada pelos exércitos inimigos, mas ele toma todas as suas economias e compra um pedaço de terra... O corpo da esposa há muito deixou de experimentar os poderes da fertilidade, mas ele compra um bercinho...
O profeta, descobri, é aquele que arranca a etiqueta da morte. Ele anda na contramão do tempo. O normal é nascer, viver e morrer. É a regra geral da vida. Os poetas seguem esta mesma trilha de certezas. Para os profetas, no entanto, é o contrário: morrer, renascer e viver. Por isso não é fácil ser profeta. Há muitos que se autodenominam, é verdade. Mas não passam de poetas medíocres que compõem suas rasas canções com aquilo que todos gostam de ouvir. É necessário, portanto, considerar o que o profeta não é, pois quando conhecemos o contrário, fica fácil entender o correto.
O profeta não é um educador. O educador é aquele que ensina visando à compreensão. O profeta, ao contrário, busca a transformação. Para ele, compreender é pouco. Ele quer mudanças. O professor explica tudo com detalhes a fim de que não haja lugares escuros. Seu negócio é a claridade. O profeta, ao contrário, gosta da neblina. Ele fala mistérios. Enquanto o negócio do professor é o sol, o do profeta é o Vento! E este, sopra onde quer. Independe da vontade e dos conceitos humanos.
O profeta também não é um artista plástico. O pintor é aquele que enfeita aquilo que está morto para devolver-lhe a aparência de vivo. Ele cobre a tela morta com luzes e cores. Ele cultiva as aparências estéticas. O profeta, ao contrário, não se interessa por aparências. Aliás, a última coisa com o que ele conta são com as aparências. Ele sabe que folhas, mesmo exuberantes e viçosas, não matam a fome de Deus. Ele não chama o morto de vivo e nem quer fazer o morto parecer vivo. O profeta não veio para melhorar ninguém. Ele quer vivificar. Tornar vivo o que estivera morto.
O profeta também não é um moralista. Ele tem a plena consciência de que é impossível dar ordens a uma pedra. Ele sabe que morto não responde aos apelos morais e éticos por um simples fato: ele está morto! E morto não é capaz de obedecer a ordens. Não há nada nele que o capacite a responder qualquer apelo que vem de fora. Quem vocifera normas e condutas num cemitério corre o risco de ficar rouco e solitário, quando não, ser taxado de louco.
Por fim, o profeta também não é um líder político. Político é aquele que fala o que todos querem ouvir. Sua estratégia é agradar com lisonjas ouvidos ávidos por prazeres estéticos. Faz promessas mirabolantes em troca de favores concedidos – o voto. Utilizam-se de quaisquer meios para alcançar seus objetivos. Trocam de pele segundo o ambiente em que se encontram. O profeta é diferente. Não tem o selo de nenhum partido por não aceitar meias verdades. Quem se prepuser a iluminar os outros não pode se contentar com verdades relativas. Sua palavra é a inversão da palavra política. Ele fala aquilo que a maioria não quer ouvir. Sua palavra não provoca arrepios sensuais pelo simples fato de provocar indignação em muitos. Ele herdou uma vocação e não uma profissão. E vai cumpri-la a qualquer custo.
Mas, que palavra é esta que tem o poder de trazer vida aos mortos? Certamente não pode ser uma palavra qualquer. Ela não pode pertencer à natureza do profeta. Apesar de arraigada em suas entranhas, a palavra não nasceu dele, fruto apenas de seu conhecimento e experiência. O seu local de origem não pertence à escala das coisas criadas. A palavra da experiência própria não tem o poder de gerar vida. Por isso há de vir de um Outro. Alguém com poder suficiente para ressuscitar os mortos.
Esta palavra não nasce da cabeça. A cabeça é o lugar das razões. É o local onde as racionalidades moram com todas as suas explicações matemáticas e científicas. A palavra do profeta nasce no coração. Ela fala de amor, não de razão. Como dizia o poeta: “O amor não tem porquês. Ama porque ama”. Profetiza bem quem ama, e não apenas entende. De bons entendedores o mundo está cheio. De bons interpretes as universidades estão abarrotadas. O que falta são os apaixonados. Homens que falam movidos pelo amor e não pela agenda.
É uma palavra que não tem por finalidade o esclarecimento, mas a invocação. Ela declara a verdade. Traz à existência a operação do sobrenatural. Liga o céu a terra, e a partir dela acontece o milagre.
Que palavra misteriosa é esta? Há de se obter a resposta nas Sagradas Escrituras. “No princípio era o Verbo. E o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. O Verbo se fez carne e habitou entre nós cheio de graça e de verdade. E vimos a Sua glória...”. A palavra do profeta que traz o morto de volta à vida é o Verbo de Deus - Jesus! E o milagre aconteceu... Como naquele cemitério judeu num livro que li sobre os horrores do holocausto, único lugar onde aquela jovem estaria a salvo das atrocidades dos soldados nazistas e das câmaras de gás, onde escondida numa sepultura próxima a sua, uma menina deu à luz um lindo bebê. O velho coveiro, guardador dos mortos e dos vivos, enrolou-o numa toalha e ao primeiro grito do menino, orou: “Grande Deus, finalmente envias-te o Messias! Pois que outra criança poderia nascer numa sepultura”.
E no cemitério, a vida apareceu...